Da cidade
A cidade-máquina-de-habitar
É em meados do século XX que o processo de expansão urbana do centro do Porto para a periferia ganha fôlego. O crescimento populacional, em boa parte resultante do afluxo de população rural aos grandes centros urbanos, em busca de melhores condições de vida, gera uma procura habitacional sem paralelo, à qual os primeiros programas de habitação proletária do Estado Novo não são minimamente capazes de dar resposta.
Entretanto, ainda no período pré-democrático, e na linha das propostas higienistas que chegavam, com grande atraso, das urbes europeias, as grandes indústrias começam a instalar-se na periferia, iniciando o êxodo urbano que caracterizará a urbanização do noroeste peninsular até aos nossos dias e que suscitaria, para a Maia e outros concelhos limítrofes do Porto, a primeira vaga de densificação urbana, na origem do que hoje podemos chamar cidade.
O complexo industrial AAA, construído a partir da década de 50, é um interessante exemplo deste processo, tanto do ponto de vista urbanístico, como arquitetónico. Não estando localizado no “centro” da Maia, não deixa de ser parte do seu embrião. A posição geográfica reflete a necessidade de libertação de efluentes na linha de água (Rio Leça) e de fácil ligação ao porto de Leixões. Por outro lado, a implantação próxima da antiga estrada Porto-Braga, o principal eixo de desenvolvimento da Maia, alimenta o processo de densificação urbana de matriz linear, de sul para norte.
É um complexo industrial de grande dimensão para a época, que inclui a construção de habitação operária, precisamente para satisfazer as necessidades habitacionais, resolvendo o afastamento geográfico ao centro do Porto e as deslocações dos trabalhadores.
Longe da “cidade industrial” de Tony Garnier e da sua escala, é evidente uma certa afetação utópica na conceção arquitetónica e social das instalações fabris, como um sistema contínuo e articulado, cuidando a integração na paisagem fluvial, os espaços de ligação e acessos e a composição integrada dos alçados e dos volumes entre si. Seja indústria ou habitação, tudo é arquitetura, tudo são “máquinas de habitar” o urbano, não fosse a admiração por Le Corbusier aqui tão oportuna.
Da arquitetura
Um projeto com vários projetos
O complexo localiza-se junto ao Rio Leça, num território de transição da Maia para Matosinhos. A intervenção, iniciada em 1952 com um projeto do Eng.º António Neto da Silva para a refinaria de azeite, posteriormente, entre 1953 e 1962, desenvolveu-se com os vários projetos de Arménio Losa e Cassiano Barbosa para o conjunto industrial e também para as habitações operárias. Por isso, o processo de projeto é ele próprio demonstração de um projeto com vários projetos.
Os diferentes edifícios foram sendo contruídos numa franja de terreno entre a Rua da Ponte da Pedra e o Rio Leça. Os armazéns e os blocos de habitação foram configurando uma frente para a rua, a norte, enquanto que, numa área, a poente, menos confrangida, as restantes dependências industriais foram sendo dispostas sem qualquer relação direta com o arruamento.
Apesar da diversidade funcional (na totalidade da intervenção) e tipológica (nas habitações) e, também, da natureza fracionada da encomenda, o conjunto final consegue definir uma equilibrada coerência formal, sobretudo pelo cuidado como se articulam os diferentes edifícios entre si e com o terreno. Para tal, são importantes: 1) as subtilezas volumétricas habilmente conseguidas com a articulação de coberturas inclinadas, coberturas planas e palas, no grupo industrial; 2) o modo como materiais e sistemas construtivos conseguem alguma harmonia plástica em todo o conjunto, em grande parte, devido ao uso genérico de superfícies lisas de reboco justapostas / sobrepostas a panos texturados de alvenaria de granito aparente; 3) o cuidado como são posicionados os edifícios a diferentes cotas, sem descuidar continuidades tanto de planos parietais (muros de contenção), como de circuitos pedonais e automóveis entre plataformas, através de escadas e de rampas. Enfim, podemos referir que o conjunto é constituído por várias partes que se complementam mesmo quando o processo de projeto parece potenciar a dissonância das formas.